domingo, 30 de junho de 2013

As manifestações de junho de 2013








Publicado em Quinta, 27 Junho 2013 

Os manifestantes, simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações explícitas contra a política, realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos Poderes Executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do Poder Legislativo nos três níveis.



Foto: Marcelo Camargo/ABr



Um traço marcante é o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero

O que segue não são reflexões sobre todas as manifestações ocorridas no país, mas focalizam principalmente as ocorridas na cidade de São Paulo, embora algumas palavras de ordem e algumas atitudes tenham sido comuns às manifestações de outras cidades (a forma da convocação, a questão da tarifa do transporte coletivo como ponto de partida, a desconfiança com relação à institucionalidade política como ponto de chegada), bem como o tratamento dado a elas pelos meios de comunicação (condenação inicial e celebração final, com criminalização dos “vândalos”), permitam algumas considerações mais gerais a título de conclusão.

O estopim das manifestações paulistanas foi o aumento da tarifa do transporte público e a ação contestatória da esquerda com o Movimento Passe Livre (MPL), cuja existência data de 2005 e é composto por militantes de partidos de esquerda. 
Em sua reivindicação específica, o movimento foi vitorioso sob dois aspectos. Conseguiu a redução da tarifa e definiu a questão do transporte público no plano dos direitos dos cidadãos, e portanto afirmou o núcleo da prática democrática, qual seja, a criação e defesa de direitos por intermédio da explicitação (e não do ocultamento) dos conflitos sociais e políticos.

O inferno urbano

Não foram poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimiram sua perplexidade diante das manifestações de junho de 2013: de onde vieram e por que vieram se os grandes problemas que sempre atormentaram o país (desemprego, inflação, violência urbana e no campo) estão com soluções bem encaminhadas e reina a estabilidade política? As perguntas são justas, mas a perplexidade, não, desde que voltemos nosso olhar para um ponto que foi sempre o foco dos movimentos populares: a situação da vida urbana nas grandes metrópoles brasileiras.

Quais os traços mais marcantes da cidade de São Paulo nos últimos anos e, sob certos aspectos, extensíveis às demais cidades? Resumidamente, podemos dizer que são os seguintes: 

a) explosão do uso do automóvel individual. A mobilidade urbana se tornou quase impossível, ao mesmo tempo em que a cidade se estrutura com um sistema viário destinado aos carros individuais em detrimento do transporte coletivo, mas nem mesmo esse sistema é capaz de resolver o problema; 

b) explosão imobiliária com os grandes condomínios (verticais e horizontais) e shopping centers, que produzem uma densidade demográfica praticamente incontrolável, além de não contar com redes de água, eletricidade e esgoto, os problemas sendo evidentes, por exemplo, na ocasião de chuvas; 

c) aumento da exclusão social e da desigualdade com a expulsão dos moradores das regiões favorecidas pelas grandes especulações imobiliárias e a consequente expansão das periferias carentes e de sua crescente distância com relação aos locais de trabalho, educação e serviços de saúde.
(No caso de São Paulo, como aponta Erminia Maricato, deu-se a ocupação das regiões de mananciais, pondo em risco a saúde de toda a população; em resumo: degradação da vida cotidiana das camadas mais pobres da cidade); 

d) o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero. No caso de São Paulo, sabe-se que o programa do metrô previa a entrega de 450 quilômetros de vias até 1990; de fato, até 2013, o governo estadual apresenta 90 quilômetros. Além disso, a frota de trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e mal conservada; à insuficiência quantitativa para atender à demanda, somam-se atrasos constantes por quebra de trens e dos instrumentos de controle das operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTM, também de responsabilidade do governo estadual. 
No caso do transporte por ônibus, sob responsabilidade municipal, um cartel domina completamente o setor sem prestar contas a ninguém: os ônibus são feitos com carrocerias destinadas a caminhões, portanto feitos para transportar coisas, e não pessoas; as frotas estão envelhecidas e quantitativamente defasadas com relação às necessidades da população, sobretudo as das periferias da cidade; as linhas são extremamente longas porque isso as torna mais lucrativas, de maneira que os passageiros são obrigados a trajetos absurdos, gastando horas para ir ao trabalho, às escolas, aos serviços de saúde e voltar para casa; não há linhas conectando pontos do centro da cidade nem linhas interbairros, de modo que o uso do automóvel individual se torna quase inevitável para trajetos menores. 

Em resumo: definidas e orientadas pelos imperativos dos interesses privados, as montadoras de veículos, empreiteiras da construção civil e empresas de transporte coletivo dominam a cidade sem assumir nenhuma responsabilidade pública, impondo o que chamo de inferno urbano.




A tradição paulistana de lutas

Recordando: a cidade de São Paulo (como várias das grandes cidades brasileiras) tem uma tradição histórica de revoltas populares contra as péssimas condições do transporte coletivo, isto é, a tradição do quebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram e incendeiam ônibus e trens (à maneira do que faziam os operários no início da Segunda Revolução Industrial, quando usavam os tamancos de madeira – em francês, os sabots, donde a palavra francesa sabotage, sabotagem – para quebrar as máquinas)
Entretanto, não foi esse o caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena indagar por quê. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza explicitamente a contestação, em vez de politizá-la simbolicamente, como faz o quebra-quebra.

Recordando: nas décadas de 1970 a 1990, as organizações de classe (sindicatos, associações, entidades) e os movimentos sociais e populares tiveram um papel político decisivo na implantação da democracia no Brasil pelos seguintes motivos: introdução da ideia de direitos sociais, econômicos e culturais para além dos direitos civis liberais; afirmação da capacidade auto-organizativa da sociedade; introdução da prática da democracia participativa como condição da democracia representativa a ser efetivada pelos partidos políticos. Numa palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos sociais e movimentos populares eram políticos, valorizavam a política, propunham mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos políticos como mediadores institucionais de suas demandas.

Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo, que produziu: 
fragmentação, terceirização e precarização do trabalho (tanto industrial como de serviços), dispersando a classe trabalhadora, que se vê diante do risco da perda de seus referenciais de identidade e de luta; refluxo dos movimentos sociais e populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela que rege os movimentos sociais; surgimento de uma nova classe trabalhadora heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada que, por isso, ainda não tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no espaço público e, por isso mesmo, é atraída e devorada por ideologias individualistas como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a ideologia do “empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição, o isolamento e o conflito interpessoal, quebrando formas anteriores de sociabilidade solidária e de luta coletiva. 

Erguendo-se contra os efeitos do inferno urbano, as manifestações guardaram da tradição dos movimentos sociais e populares a organização horizontal, sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos. Mas, diversamente dos movimentos sociais e populares, tiveram uma forma de convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares de manifestantes nas ruas.

O pensamento mágico

A convocação foi feita por meio das redes sociais. Apesar da celebração desse tipo de convocação, que derruba o monopólio dos meios de comunicação de massa, é preciso mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas redes, que possui algumas características que o aproximam dos procedimentos da mídia: 
É indiferenciado: poderia ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva etc., e calhou ser por causa da tarifa do transporte público; tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou à recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de massa. 

(Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos jovens de Nova York, que, antes de se dissolver, tornou-se um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais triste, pois, com o fato de as manifestações permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);

Assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários, e portanto não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, desse ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa.
A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a ideia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação;

A recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de massa, portanto indiferente à determinação de classe social; ou seja, no caso presente, ao se apresentar como uma ação da juventude, o movimento assume a aparência de que o universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que, efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e político, bastando lembrar que as manifestações das periferias não foram apenas de “juventude” nem de classe média, mas de jovens, adultos, crianças e idosos da classe trabalhadora. 

No ponto de chegada, as manifestações introduziram o tema da corrupção política e a recusa dos partidos políticos. Sabemos que o MPL é constituído por militantes de vários partidos de esquerda e, para assegurar a unidade do movimento, evitou a referência aos partidos de origem. Por isso foi às ruas sem definir-se como expressão de partidos políticos, e em São Paulo, quando, na comemoração da vitória, os militantes partidários compareceram às ruas foram execrados, espancados e expulsos como oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da massa.
A crítica às instituições políticas não é infundada, possui base concreta: 

no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;

no plano estrutural: no Brasil, sociedade autoritária e excludente, os partidos políticos tendem a ser clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados; a qualidade dos Legislativos nos três níveis é a mais baixa possível e a corrupção é estrutural; como consequência, a relação de representação não se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e cooptação;

a crítica ao PT: de ter abandonado a relação com aquilo que determinou seu nascimento e crescimento, isto é, o campo das lutas sociais auto-organizadas, e ter-se transformado numa máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e escrito muitos militantes ao longo dos últimos vinte anos). 

Isso, porém, embora explique a recusa, não significa que esta tenha sido motivada pela clara compreensão do problema por parte dos manifestantes. De fato, a maioria deles não exprime em suas falas uma análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos políticos, qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um lado, e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuísmos da ditadura.
Em lugar de lutar por uma reforma política, boa parte dos manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição republicana e democrática.
Assim, sob esse aspecto, apesar do uso das redes sociais e da crítica aos meios de comunicação, a maioria dos manifestantes aderiu à mensagem ideológica difundida anos a fio pelos meios de comunicação de que os partidos são corruptos por essência. Como se sabe, essa posição dos meios de comunicação tem a finalidade de lhes conferir o monopólio das funções do espaço público, como se não fossem empresas capitalistas movidas por interesses privados.
Dessa maneira, a recusa dos meios de comunicação e as críticas a eles endereçadas pelos manifestantes não impediram que grande parte deles aderisse à perspectiva da classe média conservadora difundida pela mídia a respeito da ética.
De fato, a maioria dos manifestantes, reproduzindo a linguagem midiática, falou de ética na política (ou seja, a transposição dos valores do espaço privado para o espaço público), quando, na verdade, se trataria de afirmar a ética da política (isto é, valores propriamente públicos), ética que não depende das virtudes morais das pessoas privadas dos políticos, e sim da qualidade das instituições públicas enquanto instituições republicanas

A ética da política, no nosso caso, depende de uma profunda reforma política que crie instituições democráticas republicanas e destrua de uma vez por todas a estrutura deixada pela ditadura, que força os partidos políticos a fazer coalizões absurdas se quiserem governar, coalizões que comprometem o sentido e a finalidade de seus programas e abrem as comportas para a corrupção. Em lugar da ideologia conservadora e midiática de que, por definição e por essência, a política é corrupta, trata-se de promover uma prática inovadora capaz de criar instituições públicas que impeçam a corrupção, garantam a participação, a representação e o controle dos interesses públicos e dos direitos pelos cidadãos. Numa palavra, uma invenção democrática.

Ora, ao entrar em cena o pensamento mágico, os manifestantes deixam de lado o fato de que, até que uma nova forma da política seja criada num futuro distante, quando, talvez, a política se realizará sem partidos, por enquanto, numa república democrática (ao contrário de numa ditadura), ninguém governa sem um partido, pois é este que cria e prepara quadros para as funções governamentais para a concretização dos objetivos e das metas dos governantes eleitos. Bastaria que os manifestantes se informassem sobre o governo Collor para entender isso: Collor partiu das mesmas afirmações feitas por uma parte dos manifestantes (partido político é coisa de "marajá" e é corrupto) e se apresentou como um homem sem partido. Resultado: não teve quadros para montar o governo nem diretrizes e metas coerentes e deu feição autocrática ao governo, isto é, "o governo sou eu". Deu no que deu.

Além disso, parte dos manifestantes está adotando a posição ideológica típica da classe média, que aspira por governos sem mediações institucionais, e, portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que "meu partido é meu país", ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os partidos políticos.

Assim, em lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma invenção democrática, o pensamento mágico de grande parte dos manifestantes se ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção. Historicamente, sabemos onde isso foi dar. E por isso não nos devem surpreender, ainda que devam nos alarmar, as imagens de jovens militantes de partidos e movimentos sociais de esquerda espancados e ensanguentados durante a manifestação de comemoração da vitória do MPL. Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na Alemanha dos anos 1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.

Conclusão provisória

Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.

Não se trata, como se ouviu dizer nos meios de comunicação, que finalmente os jovens abandonaram a "bolha" do condomínio e do shopping center e decidiram ocupar as ruas (já podemos prever o número de novelas e minisséries que usarão essa ideia para incrementar o programa High School Brasil, da Rede Globo). Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos Poderes Executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do Poder Legislativo nos três níveis. Praticando a tradição do humor corrosivo que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro das palavras e do discurso conservador por meio da inversão das significações e da irreverência, indicando uma nova possibilidade de práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.

Justamente porque uma nova possibilidade política está aberta, algumas observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e reacionária.

Comecemos por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de juventude, como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de classe social, que, entretanto, é clara na composição social das manifestações das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma parte dos manifestantes não vive nas periferias das cidades, não experimenta a violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos manifestantes. Com isso, podemos fazer algumas indagações. Por exemplo: os jovens manifestantes de classe média que vivem nos condomínios têm ideia de que suas famílias também são responsáveis pelo inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos bairros e a expulsão dos moradores populares para as periferias distantes e carentes)? 
Os jovens manifestantes de classe média que, no dia em que fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão na expectativa do presente quando completarem essa idade) têm ideia de que também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então, que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação (isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política corrupta, como é típico da classe média?

Essas indagações não são gratuitas nem expressão de má vontade a respeito das manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um lastro histórico.

Motivo político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação das manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta algumas perguntas: estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano, e portanto enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte, que, como todos sabem, não se relacionam pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais? 
Estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais? 
Estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana, participativa? 
Estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação? 

Lastro histórico: quando Luiza Erundina, partindo das demandas dos movimentos populares e dos compromissos com a justiça social, propôs a Tarifa Zero para o transporte público de São Paulo, ela explicou à sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada pela prefeitura e que não faria o subsídio implicar cortes nos orçamentos de educação, saúde, moradia e assistência social, isto é, dos programas sociais prioritários de seu governo. Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga empresa municipal de transporte) e forçou os empresários privados a renovar sua frota. Depois disso, em inúmeras audiências públicas, apresentou todos os dados e planilhas da CMTC e obrigou os empresários das companhias privadas de transporte coletivo a fazer o mesmo, de maneira que a sociedade ficou plenamente informada quanto aos recursos que seriam necessários para o subsídio. Ela propôs, então, que o subsídio viesse de uma mudança tributária: o IPTU progressivo, isto é, o imposto predial e territorial seria aumentado para os imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o subsídio junto com outros recursos da prefeitura. Na medida que os mais ricos, como pessoas privadas, têm serviçais domésticos que usam o transporte público e, como empresários, têm funcionários usuários desse mesmo transporte, uma forma de realizar a transferência de renda, que é base da justiça social, seria exatamente fazer com que uma parte do subsídio viesse do novo IPTU.

Os jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou: comerciantes fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout das empresas, nos "bairros nobres" foram feitas manifestações contra o "totalitarismo comunista" da prefeita e os poderosos da cidade "negociaram" com os vereadores a não aprovação do projeto de lei. 
A Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma de democracia participativa, apresentada com lisura e ética política, sem qualquer mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada. Esse lastro histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não basta ausência de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que tudo aconteça imediatamente da melhor maneira e como se deseja.

Cabe uma última observação: se não levarem em consideração a divisão social das classes, isto é, os conflitos de interesses e de poderes econômico-sociais na sociedade, os manifestantes não compreenderão o campo econômico-político no qual estão se movendo quando imaginam estar agindo fora da política e contra ela. Entre os vários riscos dessa imaginação, convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência.


sábado, 29 de junho de 2013

O mundo é um ovo


"E, acreditemos ou não, a Internet não é mais que a versão virtual dessa teia de aranha de hipervínculos também aplicáveis na vida real. Porque uma alta porcentagem das ações humanas derivam da conectividade e da relação direta ou indireta que temos uns com os outros."

O MUNDO É UM OVO[1]

Daniel Salamanca Núñez


Desde o início do ano 2006 me impus um ritual simples: tirar uma foto Polaroid® a todos os que conhecia (amigos, familiares ou companheiros), e, depois, a todos os que ia conhecendo, direta ou indiretamente. A ideia desse experimento social, que apelidei com a expressão popular ¨O mundo é um ovo¨, era comprovar se a teoria dos seis graus[2] era verdadeira, e não uma conjectura infundada e sem sentido. Em linhas gerais, esta teoria tenta provar que qualquer pessoa na Terra pode estar conectada a outra por meio de uma cadeia de conhecidos que não possui mais que cinco intermediários.

Bom, o projeto é composto por mais de 800 fotografias, várias versões de mapas reunidas em uma atlas, 17 álbuns e uma série de 54 pinturas e desenhos que, junto com um cubo Rubik gigante, constituem um pequeno mundo da arte de Bogotá. E, ainda que a ideia tenha talvez nascido sem maiores pretensões, em alguma noite insone, logo percebi que por trás dessa reflexão sobre as pessoas que me rodeavam e a forma como me relaciono com elas e o mundo, se escondia uma fascinante teoria sociológica. 

Por um lado, falo de um esquecido experimento de Stanley Milgram[3]; e, por outro, de uma profunda e detalhada pesquisa realizada por Duncan J. Watts, em seu livro Six degrees, The Science of a connected age, em que expõe, de maneira prática e racional, os sistemas de conexão em que vivemos e sua possível aplicação no comércio, na indústria e na promoção da produtividade, e como ferramenta para as bases de dados ou aplicativos da Internet. 

O caso mais conhecido e difundido é a rede social Facebook[4], que precisamente se baseia nessas estruturas para aproximar as pessoas umas das outras e que hoje conta com mais de 200 milhões de usuários registrados em apenas 5 anos de vida. E, acreditemos ou não, a Internet não é mais que a versão virtual dessa teia de aranha de hipervínculos também aplicáveis na vida real. Porque uma alta porcentagem das ações humanas derivam da conectividade e da relação direta ou indireta que temos uns com os outros. Quem sabe, talvez amanhã você aperte a mão de um futuro Nobel da paz, alguma estrela de rock ou de um emissário de alguma religião distante. São os acasos da vida e as marcas inevitáveis do destino, nesse caso, ingenuamente controladas por um eu invisível e uma lente obtusa ameaçada de extinção.

Assim, ¨O mundo é um ovo¨, também chamado de ¨seis graus¨ ou ¨mundo é pequeno¨, é um trajeto artístico de caráter aberto que explora, por meio da imagem fotográfica, gráfica e plástica, as diversas formas de socialização da atualidade. É uma prova em larga escala de como nos relacionamos uns com os outros e como o futuro do planeta está subordinado a estas cadeias e ações metafísicas do universo. Também, e é inevitável não dizer, tornou-se para mim um modus-vivendo e um pequeno baú que entesoura o mundo que me rodeia. Um mundo que em março de 2013, e depois de vários anos amadurecendo, faz uma parada estratégica na Revista Carbono.


Tradução Bruna Nunes.



NOTAS

[1] Nota do tradutor: traduzido do espanhol ¨el mundo es un pañuelo¨, que significa literalmente ¨o mundo é um lenço¨. Trata-se expressão idiomática oriunda do castelhano, que corresponde em português à expressão ¨o mundo é pequeno¨ ou o ¨mundo é um ovo¨.


[2] WATTS Duncan J. Six degrees, The science of a connected age. Norton Paperback. 2004.


[3] Stanley Migram foi um psicólogo norte-americano cujas principais contribuições foram nas área de relacionamento social. Destaca-se o seu estudo sobre o mundo pequeno e a obediência da autoridade.


[4] Facebook é uma página web de redes sociais criada por Mark Zuckerberg. Originalmente era um site para estudantes da Universidade de Havard, porém, atualmente está aberto a qualquer pessoa que tenha uma conta de e-mail. Os usuários podem participar em uma ou mais redes sociais, em relação a sua situação acadêmica, seu lugar de trabalho ou região geográfica.


***

DANIEL SALAMANCA NÚÑEZ é um artista visual que vive e trabalha em Bogotá, Colombia. Sua obra gira entorno da memoria, das conexões, viagens, o destino e a criação. Temas que são tratados principalmente através dos meios bidimensionais tradicionais, como o desenho e a pintura, coluna vertebral de sua prática, mas também através da escritura criativa, a fotografia, o arquivo, os mapas e muitos outros recursos provenientes da expressão gráfica.

A série El mundo es un pañuelo conta também com uma página no Flickr onde o artista exibe todos os retratos polaroid que vem produzindo desde 2005. Mais informações sobre este e outros trabalhos podem ser encontradas no website do artista: http://www.danielsalamanca.info/.





Envío - Daniel Salamanca Núñez. Mapas, envelope e lápis sobre papel (caderno), 2010. 

segunda-feira, 24 de junho de 2013

domingo, 23 de junho de 2013

Mais sugestões para os dias de hoje -Redes de indignação e esperança



Redes de indignação e esperança -Movimentos sociais na era da internet 


Trecho do livro:


"O poder é exercido por meio da coerção (o monopólio da violência, legítima ou não, pelo controle do Estado) e/ou pela construção de significado na mente das pessoas, mediante mecanismos de manipulação simbólica. As relações de poder estão embutidas nas instituições da sociedade, particularmente nas do Estado. 
Entretanto, uma vez que as sociedades são contraditórias e conflitivas, onde há poder há também contrapoder, que considero a capacidade de os atores sociais desafiarem o poder embutido nas instituições da sociedade com o objetivo de reivindicar a representação de seus próprios valores e interesses. 

Todos os sistemas institucionais refletem as relações de poder e seus limites tal como negociados por um interminável processo histórico de conflito e barganha. A verdadeira configuração do Estado e de outras instituições que regulam a vida das pessoas depende dessa constante interação de poder e contrapoder."


Manuel Castells



Para ler o texto na íntegra:

http://zerohora.clicrbs.com.br/pdf/15208452.pdf


Para nossos dias sugestão de livro

Sugestão de livro:
Psicologia de massas do Facismo de Wilhelm Reich



"Amor, trabalho e conhecimento são as fontes de nossa vida. 
Deveriam também governá-la.

Wilhelm Reich


A Psicologia de Massas do Fascismo foi pensada entre 1930 e 1933, anos de crise na Alemanha. Foi escrita em 1933 e publicada em setembro de 1933, na Dinamarca, onde foi reeditada em abril de 1934.


Abaixo trechos do livro:
(...)

"Na época em que este livro foi escrito, o fascismo era geralmente considerado como um "partido político" que à semelhança de outros "grupos sociais", defendia uma"ideia política" organizada. De acordo com esta visão, "o partido fascista impunha o fascismo por meio da força ou de 'manobras políticas'".

Opondo-se a isso, minhas experiências, médicas com homens e mulheres de diferentes classes, raças, nações, credos, etc., ensinaram-me que o "fascismo" não é mais do que a expressão politicamente organizada da estrutura do caráter do homem médio, uma estrutura que não é o apanágio de determinadas raças ou nações, ou de determinados partidos, mas que é geral e internacional. 
Neste sentido caracterial, o "fascismo" é a atitude emocional básica do homem oprimido da civilização autoritária da máquina, com sua maneira mística e mecanicista de encarar a vida.

É o caráter mecanicista e místico do homem moderno que cria os partidos fascistas, e não vice-versa.

O fascismo ainda hoje é considerado, devido a uma reflexão política errônea, como uma característica nacional específica dos alemães ou dos japoneses.
É deste primeiro erro que decorrem todos os erros de interpretação posteriores. Em detrimento dos verdadeiros esforços pela liberdade, o fascismo foi e ainda é considerado como a ditadura de uma pequena clique reacionária.
A persistência neste erro deve ser atribuída ao medo que temos de reconhecer a situação real: o fascismo é um fenômeno internacional que permeia todos os corpos da sociedade humana de todas as nações. 
Esta conclusão coaduna-se com os acontecimentos internacionais dos últimos quinze anos. As minhas experiências em análise do caráter convenceram-me de que não existe um único indivíduo que não seja portador, na sua estrutura, de elementos do pensamento e do sentimento fascistas.

O fascismo como um movimento político distingue-se de outros partidos reacionários pelo fato de ser sustentado e defendido por massas humanas.

Estou plenamente consciente da enorme responsabilidade contida nestas afirmações. Desejaria, para bem deste mundo perturbado, que as massas trabalhadoras estivessem igualmente conscientes da sua responsabilidade pelo fascismo.É necessário fazer uma distinção rigorosa entre o militarismo comum e o fascismo. A Alemanha do imperador Guilherme foi militarista, mas não fascista. 

Como o fascismo é sempre  e em toda a parte um movimento; apoiado nas massas, revela todas as características e contradições da estrutura do caráter das massas humanas: não é, como geralmente se crê, um movimento exclusivamente reacionário, mas sim um amálgama de sentimentos de revolta e ideias sociais reacionárias.

Se entendemos por revolucionária a revolta racional contra as situações insuportáveis existentes na sociedade humana, o desejo racional de "ir ao fundo, à raiz de todas as coisas" ("radical", "raiz"), para melhorá-las, então o fascismo nunca é revolucionário.  Pode, isso sim, aparecer sob o disfarce de emoções revolucionárias. Mas não se considerará revolucionário o médico que combate a doença com insultos, mas sim aquele que investiga as causas da doença com calma, coragem e consciência, e a combate.

(...)

A mentalidade fascista é a mentalidade do "Zé Ninguém", que é subjugado sedento de autoridade e, ao mesmo tempo, revoltado."



(...)

” Quando se ouve um indivíduo fascista, de qualquer tendência, insistir em apregoar a "honra da nação" (em vez da honra do homem) ou a "salvação da sagrada família e da raça" (em vez da sociedade de trabalhadores); quando o fascista procura se evidenciar, recorrendo a toda a espécie de chavões, pergunte-se a ele, em público, com calma e serenidade, apenas isto:
"O que você faz, na prática, para alimentar esta nação, sem arruinar outras nações? O que você faz, como médico, contra as doenças crônicas; como educador, pelo bem-estar das crianças; como economista, contra a pobreza; como assistente social,contra o cansaço das mães de prole numerosa; como arquiteto, pela promoção da higiene habitacional? 
E agora, em vez da conversa fiada de costume, dê respostas concretas e práticas, ou, então, cale-se!"

Daqui se conclui que o fascismo internacional nunca será derrotado por manobras políticas. Mas sucumbirá perante a organização natural do trabalho, do amor e do conhecimento em escala internacional. 
Na nossa sociedade, o trabalho, o amor e o conhecimento não são ainda a força determinante da existência humana. 
E mais: estas grandes forças do princípio positivo da vida não estão ainda conscientes do seu poder, do seu valor insubstituível, da sua extraordinária importância para o ser social. 

É por isso que hoje, um ano depois da derrota militar do fascismo partidário, a sociedade humana continua à beira do precipício. A queda da nossa civilização é inevitável se os trabalhadores, os cientistas de todos os ramos vivos (e não mortos) do conhecimento e os que dão e recebem o amor natural, não se conscientizarem, a tempo, da sua gigantesca responsabilidade."

No link abaixo o livro:

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Filhos da rua


Ano passado, o jornal Zero Hora publicou uma série de reportagens relativas a situação de criança e adolescentes em situação de rua na cidade de Porto Alegre, sem dúvida o retrato apresentado nos demonstra que ainda falta muito para garantir os direitos das crianças e adolescentes em nosso país. 


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Filho da Rua



Jornal Zero Hora em 17/06/2012 


Em reportagem especial, ZH segue os passos de uma criança que peregrina pelas ruas desde os cinco anos


Felipe vive nas ruas de Porto Alegre desde os cinco anos
Foto: Jefferson Botega

Letícia Duarte


Nesta reportagem especial, você vai conhecer os passos de um menino que peregrina há nove anos pelas esquinas sem que ninguém consiga detê-lo. Com autorização do Juizado da Infância e da Juventude, ZH acompanha a jornada de Felipe (nome fictício) desde março de 2009. Identificado entre 383 crianças e adolescentes em situação de rua em censo realizado na Capital em 2008, o guri hoje com 14 anos tem uma história que revela um pouco de todos eles.

Para contá-la, ZH reconstituiu sua trajetória.

Desde a casa onde Felipe cresceu até as calçadas em que dormia. Das 320 páginas que registram sua passagem por diferentes instituições às memórias da mãe e de educadores que conviveram com ele. Das escolas de onde fugiu aos abrigos que o acolheram.

Como ele, outros chegam às calçadas empurrados por um misto de pobreza, negligência familiar, defeitos na rede de proteção, indiferença da sociedade, esmola, drogas.

Nesta reportagem, você vai entender por que não conseguem sair.

Os nomes do menino e da família foram trocados para preservar as identidades, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente. Para consultar os documentos que registram esta história, Zero Hora obteve autorização da 1ª Vara da Infância e da Juventude da Capital.


A mãe aprendeu a ler as sombras entre as esquinas. Caminha olhando para os lados, arqueando as sobrancelhas desenhadas com uma pinça. Em cada vulto, procura o filho caçula, de 11 anos, a quem não vê há um ano e 18 dias. Segue em direção à Vila dos Papeleiros, na principal entrada da Capital, forçando a perna esquerda que a paralisia infantil encolheu. Soube por uma vizinha que o menino está nas redondezas, onde há um ponto de venda de crack. Na tarde quente deste 27 de março de 2009, carrega a tensão de uma jornada decisiva.

Sua última busca por Felipe.

Cansada da luta para resgatá-lo, Maria tomou uma decisão. Vai viver ao lado da mãe e das irmãs em Torres. Antes, quer encontrar o filho. O suor escorre pelo peito enquanto ela espreme as mãos, deixando à mostra as unhas pintadas com esmalte rosa cintilante. Não é porque é pobre que não tem que se cuidar, diz.

Veja o vídeo sobre a trajetória errante de Felipe


Felipe começou a fugir de casa aos cinco anos. A mãe admite que nunca conseguiu cuidar direito dele e dos cinco filhos mais velhos. Passava os dias limpando casas, cuidando das crianças dos outros. Mas acredita que o menino teria retornado para o lar erguido com tábuas de lixo reciclado, no bairro Bom Jesus, se não ganhasse tanta esmola de gente que imagina estar fazendo uma boa ação.

Maria não quer conversar agora – está ocupada distinguindo rastros. Ao entrar na vila, fixa o olhar em um menino moreno, com uma camiseta verde grande demais. Parece com Felipe, embora tão mais magrinho desde o último abraço. Apressa o passo e o menino corre.

– Ele nunca fugiu de mim antes, não deve ser ele – raciocina.

Era. O menino corre em direção à Avenida Castelo Branco. Maria não o alcança, e pergunta a uma moradora de rua se o conhece. A resposta pesa como sentença:

– Sim, ele me chama de mãe.

Quando apareceu em busca de uma pedra de crack, Felipe havia dito à mulher que seus pais haviam morrido. Maria nem sabe o que dói mais: a fuga ou a morte inventada, a mentira ou a realidade.

– Ele sempre vem correndo e me abraça. E aí diz: desculpa, mãe, não vou mais fugir. Hoje, ele nem olhou pra trás – lamenta a mãe verdadeira.

Maria acredita que o filho vai voltar. Comprime os lábios, entrelaça os dedos numa prece sem reza. Espera na casa oferecida por uma vizinha do ponto de tráfico, onde observa desde crianças até idosos sucumbirem ao mesmo vício. Fazem fila diante da porta do traficante. Quando um jovem de boné e abrigo azul-marinho aparece para distribuir a droga, 12 deles se amontoam ao seu redor. Convertidos em zumbis, não percebem que são observados. Olhos vidrados, disputam as pedras como se fossem diamantes, correm em direções opostas para consumi-las. O vaivém é permanente. No meio da tarde, a polícia faz uma batida na vila. Vinte consumidores de crack são encostados num paredão. Outros dois fogem. A mãe espreita para ver se reconhece o seu filho entre eles. Felipe não está ali.Em galeria de fotos, veja imagens das andanças de Felipe pelas ruas da Capital

Às 19h30min desta sexta-feira, ela desiste de esperar. Deixa recados entre os moradores, que digam ao filho que ela vai embora na quarta-feira, que ele apareça em casa antes para acompanhá-la a Torres. Enxuga as lágrimas pelo caminho. Diz que precisa voltar para cuidar do neto que cria. Morar no Litoral é também uma tentativa de evitar que o pequeno de seis anos tenha o mesmo destino de Felipe e seus irmãos. Um morreu assassinado, outro está preso por roubo, um terceiro passou pela Fase. As duas irmãs também caíram nas drogas e perambularam pelas ruas.

– Outro dia com a casa vazia – suspira.

A MÃE ESPERA, EM VÃO

Nos dias seguintes, reza para que o caçula apareça enquanto acomoda as roupas em caixas de papelão para a mudança. Levará consigo o filho de 17 anos, o neto e a gatinha de estimação, que recebeu o nome de Anjinha pela pelagem toda branca. As filhas são maiores de idade, vão seguir seu próprio destino.

No dia da partida, deixa separada uma muda de roupa limpa, para o caso de encontrar Felipe pelo caminho. No trajeto da Vila Bom Jesus até a Estação Rodoviária, mantém a cabeça colada no vidro da Kombi que contratou para o frete com o dinheiro da venda da geladeira e dos poucos móveis. Maria se apega à remota esperança de que o menino apareça de repente. Sentada em um banco da Rodoviária, segura com a mão direita a cabeça, que pensa no filho ausente, enquanto vigia Anjinha, quieta em uma caixa própria para o transporte no ônibus.

– Preciso ir com ou sem ele, já parei muito tempo a minha vida – desiste.

Foge da realidade no dia da mentira, 1º de abril de 2009. Desde então, a criança não tem mais uma casa para voltar. A cidade dá à luz oficialmente mais um menino de rua.

Herdeiro de um lar em crise

O flash de uma infância feliz ficou imortalizado na fotografia: aos três anos, um Felipe de cabelos loiros encaracolados faz pose em cima de um pônei emprestado por um vizinho, na Vila Mário Quintana, na zona norte de Porto Alegre.

O sorriso eternizado no único retrato de sua infância conta pouco de sua história. A foto foi tirada logo após a separação dos pais, em 2001, uma perda nunca completamente superada pelo menino.

As fugas se tornaram rotina em seguida. Longe da vigilância da mãe, que passava o dia fazendo faxinas, dizia que saía para procurar o pai, a quem sempre idealizou como um herói.

Maria explicava ao filho que precisou mandar embora o companheiro de duas décadas porque estava cansada de apanhar. Nos bons tempos, o pai dos seis filhos trabalhava como vigilante no estádio Beira-Rio. Perdeu o emprego de 14 anos por causa do alcoolismo. A esposa não conseguia perdoá-lo. As marcas da violência lhe gritavam cada vez que olhava no espelho. De tanto levar socos do marido na boca, perdeu três dentes da frente.

– O doutor disse que vão cair todos, porque ficaram moles, matou a raiz. Dois caíram de uma tacada só, enquanto eu escovava os dentes – entristece-se Maria.

Sua sexta gravidez não foi planejada, mas nem por isso era indesejada. Com cinco filhos em idades entre seis e 19 anos, a doméstica de 37 anos sentia falta daquelas atenções que só as gestantes recebem, da emoção que o filho começa a dar para a mãe antes mesmo de ser parido. Acreditava que a chegada de um bebê poderia trazer dias melhores. Nunca tomou anticoncepcionais, confia que Deus sabe das coisas.

Os pés que anos depois iriam se perder entre as esquinas da Capital já denunciavam sua inquietude no Hospital Conceição, onde Felipe nasceu, às 18h47min de 15 de fevereiro de 1998.

A agitação do bebê que se apresentou ao mundo com 3,59 quilos e 51 centímetros fez com que seis dedos ficassem gravados na ficha do teste do pezinho. As bochechas vermelhas contrastavam com o cabelo castanho do recém-nascido, que irrompeu de parto normal após as 41 semanas e um dia em que sacolejou na barriga de Maria, enquanto a mãe limpava casas de família.

Sem poder parar de trabalhar, deixava Felipe sob os cuidados de uma sobrinha e das filhas, de 11 e 14 anos. Combinava com elas para que levassem o bebê até o seu serviço, para que pudesse amamentar. Agradecia a Deus por nunca ter lhe faltado leite – e o filho mamaria até os quatro anos de idade.

Afastado do pai, Felipe cresceu sem poder contar com o exemplo dos irmãos. Longe da vigilância da mãe, que passava os dias batalhando o almoço do dia seguinte, os filhos mais velhos traçavam a própria geografia. Em 2000, quando o caçula tinha dois anos, a irmã de 15 anos e o irmão de 16 foram apreendidos por furto de lâmpadas. O filho de 12 tinha reclamações na escola por roubar merenda dos colegas. O mais velho cumpria pena por roubo. O consumo de loló virou rotina entre os mais velhos. Apesar das dificuldades para criar a prole, a mãe decidiu não fazer laqueadura após o sexto parto. Pensava: e se depois quisesse mais um bebê?

Na primeira tentativa de reconstrução de sua vida, em 2001 a doméstica assumiu um novo relacionamento, com um servente de pedreiro que havia estudado até o segundo ano do Ensino Médio e a conquistou com seu jeito trabalhador.

– Ele sai de casa pra trabalhar mesmo com chuva. Se precisa, cata latinha, qualquer coisa – entusiasmou-se.

Apaixonada, Maria começou a dedicar mais tempo para o novo companheiro, e em agosto do mesmo ano, engravidou pela sétima vez. Felipe reagiu mal à mudança. Sentindo falta do pai e ciúme da mãe, rejeitava aquele estranho que tentava impor sua autoridade na casa, dando ordens sobre a hora de comer, de dormir. Não queria saber de outro homem ao lado de Maria.

– Eu não quero que tu viva com a minha mãe, quero que ela fique sozinha ou com meu pai – dizia para o padrasto.

– Por que tu não volta com meu pai? – repetia para a mãe, que acabou sofrendo aborto espontâneo meses depois.

Embora Maria negasse, os filhos relataram às autoridades que o padrasto também ficava agressivo quando bebia e batia neles. Em 2 de julho, uma das filhas queixou-se de maus-tratos a técnicos da Justiça Instantânea, que acompanhavam a adolescente desde 1998, quando foi acusada de roubar roupas em uma loja.

“Disse que o padrasto, no dia anterior, colocou seu irmão D. embaixo da água fria do chuveiro e bateu-lhe com cinta, deixando-lhe com vários vergões. Depois seu irmão foi para a escola e, por medo, não retornou mais para casa, não sabendo onde ele se encontra. V., que havia se queixado, anteriormente, do padrasto que gritava muito com ele e quis lhe bater com um espeto, também saiu de casa e não sabem onde ele está. Apesar de Felipe ter apenas três anos, puxa-lhe as orelhas e coloca-o de joelhos. Costuma chamar B. de vagabunda, dizendo que ela não presta para nada. Em outra ocasião, a adolescente queixou-se que a mãe havia lhe agredido com cabo de vassoura”, registra o documento.

Passe livre para sair de casa

Diante do acirramento do conflito familiar, Felipe começou a sair de casa com mais frequência. Com a cumplicidade dos cobradores de ônibus, que permitiam que passasse por baixo da catraca, ganhou o passaporte para sair da vila rumo ao Centro. Em suas viagens, descobriu uma nova cidade. Ruas calçadas com prédios grandes e bonitos como nunca tinha visto, o pôr do sol do Guaíba, praças cobertas de árvores e brinquedos que não havia nas vilas onde morou.

A busca pelo pai passou a ser pretexto para caminhar guiado pelos próprios prazeres. Descobriu o Parque da Redenção, encontrou meninos e meninas como ele, vagando sem destino. Um mundo divertido, onde não precisava seguir regras, e onde as pessoas lhe davam comida e dinheiro assim que estendia a mão.

De tanto procurar pelo pai, um dia Felipe acabou encontrando. Aos oito anos, em uma de suas andanças pelo centro da Capital, descobriu que seu herói também perambulava sem destino, catando latinhas. Animado pelo reencontro, voltou para casa e disse à mãe que iria viver com ele nos arredores da Vila dos Papeleiros.

A doméstica ficou triste, sabia que o marido não tinha condições de cuidar do menino, mas se achava incapaz de impor limites. Sem sequer saber o endereço, Maria informou a mudança do menino para o Conselho Tutelar, que avisou o Ministério Público, em 7 de abril de 2006.

Apesar do entusiasmo de Felipe, a reaproximação com o pai se revelou uma ilusão. O Conselho Tutelar nunca chegou a encontrar o papeleiro, e Felipe voltou a se dividir entre a rua e a casa na Bom Jesus, com a mãe e os irmãos.

Meses depois, o pai apareceu para procurá-lo por lá.

– Mãe, o pai tá aí – avisou Felipe.

– Vai lá falar com ele – respondeu a mãe.

O filho foi até a porta e voltou:

– Mas ele tá bêbado – desiludiu-se.

– Pois é, meu filho, era isso que eu te falava – consolou Maria.

Desde então, o pai nunca mais foi visto.

Esmola, o sustento na rua

Antes mesmo de chegar à idade de entrar na escola, o menino já palmilhava a cidade. Tinha cinco anos na primeira vez em que foi recolhido no centro de Porto Alegre pela Brigada Militar, por volta das 20h do dia 24 de junho de 2003. Levado ao Plantão Centralizado do Conselho Tutelar, disse que morava em Alvorada. Como na época não havia integração informatizada entre os sistemas de atendimento na Região Metropolitana, a mentira foi descoberta apenas no dia seguinte. Desde então, a distância de casa só aumentou.

Nas ruas, Felipe descobre ser capaz de conquistar sozinho o que a mãe não pode lhe dar. Nem precisa dizer nada: basta estender os braços finos e o dinheiro aparece na sua mão. Numa de suas primeiras noites na rua, aos seis anos, o menino de lábios carnudos e cabelo castanho raspado arrecada R$ 100 pedindo esmola na rodoviária. Volta para casa de táxi, com duas sacolas de rancho. Compra bolachas recheadas, refrigerante, chocolate – sonhos de consumo que os R$ 80 mensais que a mãe ganhava com faxinas nunca puderam realizar.

– O que foi, meu filho? Tu tá passando necessidade? Tu não tem comida em casa? – repreende-lhe Maria.

Felipe desconversa, promete que não vai mais fugir, parece tão feliz que a mãe não consegue castigá-lo. Nos dias seguintes, fala que vai jogar bola com os amigos e desaparece novamente. Preocupada, Maria começa a segui-lo, recolhê-lo das calçadas do Mercado Público, trancar a porta de casa e esconder a chave embaixo do travesseiro. Felipe sempre descobre os esconderijos, inventa novas desculpas para sair. Reaparece com sorriso aberto e dinheiro no bolso.

– Só tem uma razão para as crianças estarem nas sinaleiras: é porque ali ganham dinheiro. A esmola é o que fixa as crianças na rua – adverte o desembargador Breno Beutler Júnior, que atuou durante 18 anos na 1ª Vara da Infância e da Juventude da Capital, inclusive no caso de Felipe.

Sem que a família consiga deter a trajetória itinerante, a matrícula do menino na pré-escola fica só no papel. A sequência de faltas está registrada no caderno de chamada de capa verde do Jardim B, da professora Neli. Das 50 aulas do primeiro bimestre de 2004, o menino de seis anos esteve em apenas quatro. Como até então nessa faixa etária o ensino não era obrigatório, nenhuma providência foi tomada.

No ano seguinte, a mãe volta ao Conselho Tutelar e pede ajuda para matricular Felipe na primeira série. Sob o número 3061, a vaga é assegurada em uma escola estadual perto de casa, em ficha escolar preenchida com caneta preta, assinada por Maria. A esperança dura pouco. Nos primeiros dias vai à aula, mas, na hora do recreio, pula o muro de 1m50cm, pega o ônibus e volta para o Centro.

Felipe tem 179 faltas consecutivas ao longo do ano, mas só em 20 de outubro de 2005 – no final do ano letivo – a mãe recebe uma advertência do Conselho Tutelar. Maria argumenta que não consegue controlar o filho de sete anos porque trabalha fora, não tem como vigiá-lo. Ainda assim, a cobrança tardia obtém algum resultado. O menino começa a frequentar as aulas em 11 de novembro, totalizando 23 presenças ao longo do ano. Insuficiente para aprender mais do que as letras do seu nome.

Em relatório enviado ao Conselho Tutelar em 27 de dezembro, a então diretora da escola, Lucia Araujo, manifesta preocupação com a trajetória de Felipe.

“No pouco comparecimento, foi evidenciado [comportamento] agressivo com colegas, brigas, mentiras, fantasias de situações vividas, conivência da mãe com atitudes inadequadas do filho, pouco acompanhamento escolar da família, fuga da escola, inquieto para a realização de atividades na aula, além de história familiar de drogadito e de morte do irmão mais velho. Sugerimos apoio à família, na área assistencial e de saúde, para que haja progresso escolar.”

Com o dinheiro doado por anônimos, Felipe começa a ir cada vez mais longe. Três semanas antes de completar oito anos, é encontrado pelo Conselho Tutelar de Novo Hamburgo em situação de mendicância, no centro. Quando lhe perguntam quem é, responde que sua casa havia queimado num incêndio e toda sua família havia morrido. Mas durante a conversa confessa onde realmente mora. O conselheiro Valderi Luiz Barbosa leva então o menino de volta a Porto Alegre. Antes que sua mentira seja descoberta, Felipe foge da sala de espera do conselho da Bom Jesus, aproveitando que os conselheiros estão atarefados com outros casos. Volta sozinho para casa. Dois dias depois, a rotina se repete: a mãe é notificada, obrigada a acompanhar a frequência escolar do filho. Desta vez, o menino é encaminhado para atendimento em serviço socioeducativo conveniado com a prefeitura na Vila Bom Jesus. Chega a comparecer algumas vezes, mas é identificado pela educadora Marta Helena Cardoso como um aluno turista entre as 160 crianças que frequentam a instituição: visita de vez em quando, joga futebol, mas não tem concentração na escrita nem se mostra interessado na hora do conto.

Em vez de ouvir historinhas de contos de fadas no serviço socioeducativo, elege como professores outros moradores de rua que catam papelão nas imediações da praça Garibaldi, na Cidade Baixa, e no Centro. Em 7 de março de 2006, é recolhido pelo plantão do Conselho no Centro, vagando às 2h30min. Ao ser questionado sobre sua família, diz que a mãe é falecida. Sem conferir a informação nem a identidade de Felipe, o plantão conduz o menino ao Acolhimento Noturno, destinado a moradores de rua adultos. Assim que o sol nasce, Felipe volta a mendigar. Quase um mês depois, em 4 de abril, é localizado e levado por educadores do serviço de abordagens da prefeitura para o Lar Dom Bosco, um abrigo diurno que oferece atividades recreativas a crianças e adolescentes.

Neste momento, o menino de oito anos já vaga pelas ruas há três.

Bolsa para ajudar a família

Para auxiliar na reestruturação, a família é incluída no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e no Bolsa-Família em abril de 2006, recebendo um total de R$ 200 mensais. Embora um dos pré-requisitos da bolsa seja a permanência da criança na escola, Felipe nunca voltou para a sala de aula. Sem integração com programas de geração de renda e preparação para o mercado de trabalho, a bolsa não altera em nada a estrutura familiar.

Três meses depois de ser incluído no Peti, que atende 10.313 crianças e adolescentes gaúchos atualmente, o menino de oito anos é encontrado sozinho em Guaíba. Recolhido pela Brigada Militar, é levado ao Conselho Tutelar. Como diz não ter família, permanece três dias abrigado no município até descobrirem sua verdadeira identidade. Ao ser avisada, a conselheira Lucia Kümmel, do conselho da Bom Jesus, pega a Kombi do órgão e vai, junto com a mãe, resgatá-lo.

O caçula abraça e beija Maria ao reencontrá-la, promete novamente que nunca mais vai fugir. Para manter o filho por mais tempo na vila, a doméstica junta economias e compra de um vizinho uma bicicleta usada, que ele tanto sonhava em ter. Sobre as duas rodas, o menino vai embora outra vez.

Sem notícias do filho há mais de um mês, Maria volta a recorrer ao Conselho Tutelar. Localizado no Lar Dom Bosco, Felipe diz que prefere ficar ali, “pois o professor de capoeira é bem legal”, mas que gostaria de visitar a mãe de vez em quando, “porque gosta dela”. Ao fim das suas declarações, anotadas a caneta por uma educadora do lar, está uma constatação: o menino “não sabe assinar”.

Até hoje, aos 14 anos, Felipe não foi alfabetizado.

Entre a casa e as calçadas

Quanto mais o tempo passa, mais a rua dissolve os vínculos familiares de Felipe. Aos 11 anos, está há um ano morando pelas calçadas quando reaparece sozinho na rua de chão batido onde foi criado, na Vila Bom Jesus. Ao chegar, em 15 de abril de 2009, encontra aberto o portão de tábuas irregulares da casa onde morava. Por instantes, Felipe pensa que a mãe ainda o espera. Ao espiar entre as frestas, vê que outra família ocupa o cenário de sua infância. A mãe havia se mudado para Torres 15 dias antes.

Já tinham lhe contado da partida. Ao ver por si próprio, reage com indiferença.

– Acho melhor ficar na rua porque meu padrasto bate em mim – diz o menino, com o olhar sombreado pelo boné verde militar e o corpo infantil encoberto pela camiseta cinza tamanho adulto, com mangas batendo no cotovelo.

Confessa ter saudade da mãe, mas não desfaz o sorriso.

– Diz pra ela que eu amo ela muito, pra ela não sentir minha falta.

Embora apresente o olhar um tanto perdido, a fala enrolada, aos olhos dos vizinhos ainda parece o mesmo guri que gostava de jogar futebol quando pequeno. As vizinhas espiam pelos portões para confirmar se é ele mesmo. Em minutos, uma dezena de crianças forma um círculo ao seu redor. A todos os que se aproximam, Felipe saúda com um abraço, um sorriso.

– Oi, eu voltei – repete, como quem regressa de uma viagem.

Entre os amigos que o cercam, está um vizinho da mesma idade, que durante dois anos foi engraxate no centro da cidade e, com ajuda do Conselho Tutelar, regressou ao lar. No caso dele, o vínculo com a escola foi decisivo. Mesmo quando ia para o Centro, nunca parou de frequentar a sala de aula, e àquela altura, está na terceira série. Ali também estão dois meninos, de nove e 10 anos, que já venderam amendoim e bergamota nas sinaleiras da Ipiranga, perto do entroncamento da PUCRS.

– A gente só parou de ir vender na sinaleira porque o cara deixou de nos dar serviço – contou um deles.

A volta do ex-vizinho é transitória. Pouco antes das 17h, Felipe decide partir. Atravessa a rua principal da Bom Jesus rumo à parada de ônibus, deixando pelo asfalto o rastro dos papéis das balas que ganhou dos amigos. Entra na linha 671 da Unibus, passando por baixo da roleta. O destino é a Vila dos Papeleiros, onde há um ponto de crack.

– O certo seria não deixar esses guris passarem, mas sabe como é, a gente tem medo. Uma vez, um cobrador não deixou e depois o pai do guri, que era traficante, deu três tiros na cabeça dele – justifica o cobrador, contando que em linhas como a Educandário chegam a passar 80 crianças por baixo da catraca a cada dia.

Sentado no fundo do ônibus, Felipe canta versos de glória, aleluia. Músicas que lembram a religiosidade de sua infância, no tempo em que ia com a mãe à igreja e sonhava em ser pastor. Diz que não sabe rezar, mas acredita em Deus.

– Acho que ele pode me tirar dessas drogas – crê.

Não gosta de falar sobre o crack, nem sobre onde dorme. Corta a conversa dizendo que quer parar com tudo. Arrisca planos para o futuro.

– Se alguém me oferecer um serviço, vou trabalhar e vou parar de usar. Vou comprar uma casa e uma televisão e vou comprar minhas roupas, meu guarda-roupa e um carro ou uma moto – enumera, num sorriso tímido.

À medida que o Centro se aproxima, assume outra personalidade. Não quer mais conversar. Desce do ônibus correndo, na Avenida Cristóvão Colombo. Desvia dos pedestres com seu tênis Mizuno branco encardido, que garante ter comprado por R$ 1. Apanha um pedaço de arame da calçada, começa a apontá-lo a quem cruza seu caminho.

– Passa a bolsa, passa a bolsa – grita para uma mulher, sem deixar de correr, num movimento que faz balançar os pingentes em formato de estrelinha da corrente prateada que carrega no pescoço.

No caminho rumo ao ponto de crack, atravessa a rua cortando a frente de um ônibus. Passa por uma banca de churrasquinho montado sob as paradas dos coletivos e ganha um espetinho.

– Eu sempre dou força pra esse menino – acredita José Bento, o dono da banca, um dos que ajudam a mantê-lo na rua.

Sai mastigando. Pensa em parar para pedir esmola diante de um supermercado, mas segue adiante. Recolhe uma pedra no chão, faz de conta que vai atirar contra um outro morador de rua que passa pela calçada.

– Que que é, rapaz? – provoca, agressivo.

Ao chegar à Vila dos Papeleiros, cumprimenta conhecidos, senta no pátio de uma casa onde costuma vender latinhas que arrecada na rua para comprar crack. Puxa um cigarro amassado, um isqueiro do bolso e começa a fumar. Ri de cenas do desenho animado Pica-Pau que passam na televisão da vizinha. Está ansioso, quer dinheiro. Nesta tarde, não pediu esmola, ainda não pode comprar a pedra. Minutos depois, se despede com um abraço. Diz que está com sono e vai dormir. Não quer ser acompanhado. Ao avistar um isqueiro da grife Zippo nas mãos do fotógrafo, Felipe pede para ver e sai correndo levando o objeto. Desaparece outra vez pelas esquinas, na escuridão das 20h. Já tem uma moeda de troca para as drogas.

A rotina é fugir de abrigos

Será mais uma noite vagando pelas ruas, entorpecido. Uma rotina que nem a Justiça conseguiu interromper. Um ano antes, Felipe havia sido abrigado por determinação judicial na Casa de Acolhimento da prefeitura. Como a mãe não conseguia cuidar do filho, a Promotoria da Infância entrou com uma ação de destituição do poder familiar, em 2 de abril de 2008. A guarda foi concedida provisoriamente ao abrigo municipal. Mas a instituição se revelou incapaz de segurá-lo. De 10 de novembro até 15 de março de 2009, Felipe fugiu três vezes. Na primeira, aproveitou um passeio na pracinha e escapou, enquanto o educador dava atenção às outras crianças.

– Que abrigo é esse que criança foge? – indignou-se a mãe.

A coordenação do abrigo admite que as fugas são rotina. Diz que ali é um espaço de moradia, não de detenção, por isso as crianças não são trancadas. Mas reconhece falta de estrutura. Na época, em um espaço para 30 crianças, havia 64 – e apenas seis educadores sociais em cada turno.

– Quando se olha para o lado, um já pulou o muro – explicou o educador social Gilberto Lopes Leal, em 2009.

Apesar das falhas da rede, o psicólogo Lucas Neiva-Silva, pesquisador do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua da UFRGS, discorda da ideia de fracasso do sistema.

– Na história de várias outras crianças o sistema tem sido efetivo, ajudando-as a sair das ruas. Talvez, sem essas intervenções, o menino estivesse hoje em situação ainda mais vulnerável – pondera.

Em uma das vezes em que voltou ao abrigo, em 5 de março de 2009, depois de quase um mês na rua, Felipe não queria falar com ninguém. Dormiu por dois dias seguidos. Quando despertou, começou a desenhar os automóveis que aprendeu a apreciar nas ruas. Em formas coloridas, reproduzia com fidelidade os detalhes de cada peça, do motor aos equipamentos de som. Diante dos progressos, os educadores conseguiram animá-lo a voltar à escola. Felipe ficou entusiasmado ao contemplar a mochila. Pediu pra ver os cadernos, o lápis, o estojo. As aulas começariam no dia 16, segunda-feira, na Escola Aberta da Vila Cruzeiro. No domingo da véspera, fugiu outra vez. Lá fora, algo mais poderoso o atraía: o crack.

As 320 páginas de documentos compilados desde 1998 sobre Felipe contam sua peregrinação pelas ruas e comprovam que passou imune pelos serviços de proteção em que foi incluído:

- Foram 105 encaminhamentos do Conselho Tutelar

- A família foi inserida em 5 programas sociais: Bolsa-Escola, Bolsa-Família, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, Núcleo de Apoio Sociofamiliar da prefeitura de Porto Alegre e Ação Rua

- Foram 9 encaminhamentos da Promotoria da Infância e da Juventude e 3 do Juizado da Infância e da Juventude

- Felipe foi internado 7 vezes para tratar sua dependência química

- O menino passou por 3 abrigos e foi matriculado em 4 escolas. Continua analfabeto


Leia mais:

Parte 2: No meio do caminho tinha uma pedra

Parte 3: Longe da família, perto do crime

sábado, 15 de junho de 2013

Quem sente agora está ausente




"Quem chora agora está por fora
Quem ama agora está na cama doente
Só corre nunca chega na frente
Se chega é pra dizer vou embora
Arnaldo Antunes





Quem trabalha em educação sabe que é cada vez maior o número de atestados médicos apresentados pelos professores da rede pública em todo o país.
No Distrito Federal foram mais de 10 mil desde o início do ano, isto representa 30% do total destes professores. No Rio de Janeiro já foram apresentados mais de 15 mil atestados desde o começo do ano letivo, e os motivos para o afastamento no geral são os mesmo: na maioria doenças musculares e problemas psicológicos. 

É alta incidência de professores doentes e afastados. É preciso com urgência a sociedade debater e refletir sobre o que está acontecendo nas Escolas públicas das grandes cidades e elaborar um plano preventivo de saúde para os profissionais de educação que sem dúvida estão ficando doentes em nosso país.

Os professores por diversas razões ainda pouco falam deste assunto e nem mesmo colocam nas suas pautas de reivindicações pontos relativos a prevenção da saúde e a Síndrome de Burnout.


A Síndrome de "Burnout" em Professores 

Fonte: wikipédia em 13/06/2013

A síndrome de burnout de professores é conhecida como uma exaustão física e emocional que começa com um sentimento de desconforto e pouco a pouco aumenta à medida que a vontade de lecionar gradualmente diminui. Sintomaticamente, a burnout geralmente se reconhece pela ausência de alguns fatores motivacionais: energia, alegria, entusiasmo, satisfação, interesse, vontade, sonhos para a vida, idéias, concentração, autoconfiança e humor.


Um estudo feito entre professores que decidiram não retomar os postos nas salas de aula no início do ano escolar na Virgínia, Estados Unidos, revelou que entre as grandes causas de estresse estava a falta de recursos, a falta de tempo, reuniões em excesso, número muito grande de alunos por sala de aula, falta de assistência, falta de apoio e pais hostis. 
Em uma outra pesquisa, 244 professores de alunos com comportamento irregular ou indisciplinado foram instanciados a determinar como o estresse no trabalho afetava as suas vidas. 

Estas são, em ordem decrescente, as causas de estresses nesses professores:
Políticas inadequadas da escola para casos de indisciplina;
Atitude e comportamento dos administradores;
Avaliação dos administradores e supervisores;
Atitude e comportamento de outros professores e profissionais;
Carga de trabalho excessiva;
Oportunidades de carreira pouco interessantes;
Baixo status da profissão de professor;
Falta de reconhecimento por uma boa aula ou por estar ensinando bem;
Alunos barulhentos;
Lidar com os pais.


Os efeitos do estresse são identificados, na pesquisa, como:
Sentimento de exaustão;
Sentimento de frustração;
Sentimento de incapacidade;
Carregar o estresse para casa;
Sentir-se culpado por não fazer o bastante;
Irritabilidade.


As estratégias utilizadas pelos professores, segundo a pesquisa, para lidar com o estresse são:
Realizar atividades de relaxamento;
Organizar o tempo e decidir quais são as prioridades;
Manter uma dieta equilibrada ou balanceada e fazer exercícios;
Discutir os problemas com colegas de profissão;
Tirar o dia de folga;
Procurar ajuda profissional na medicina convencional ou terapias alternativas.


Quando perguntados sobre o que poderia ser feito para ajudar a diminuir o estresse, as estratégias mais mencionadas foram:
Dar tempo aos professores para que eles colaborem ou conversem;
Prover os professores com cursos e workshops;
Fazer mais elogios aos professores, reforçar suas práticas e respeitar seu trabalho;
Dar mais assistência;
Prover os professores com mais oportunidades para saber mais sobre alunos com comportamentos irregulares e também sobre as opções de programa para o curso;
Envolver os professores nas tomadas de decisão da escola e melhorar a comunicação com a escola.


Como se pode ver, o burnout de professores relaciona-se estreitamente com as condições desmotivadoras no trabalho, o que afeta, na maioria dos casos, o desempenho do profissional. A ausência de fatores motivacionais acarreta o estresse profissional, fazendo com que o profissional largue seu emprego, ou, quando nele se mantém, trabalhe sem muito apego ou esmero.


Sugestão de cartilha sobre a saúde do professor (Identificação, tratamento e prevenção):


http://www.saudedoprofessor.com.br/Burnout/Arquivos/cartilha.pdf







Meu coração 


Arnaldo Antunes


Meu coração bate sem saber
Que meu peito é uma porta que ninguém vai atender
Meu coração bate sem saber
Que meu peito é uma porta que ninguém vai atender

Quem sente agora está ausente
Quem chora agora está por fora
Quem ama agora está na cama doente
Só corre nunca chega na frente
Se chega é pra dizer vou embora
Sorriso não me deixa contente

E todas as pessoas que falam pra me consolar
Parecem um bocado de bocas se abrindo e fechando
Sem ninguém pra dublar
Eu já disse adeus antes mesmo de alguém me chamar
Não sirvo pra quem dá conselho
Quebrei o espelho, torci o joelho, não vou mais jogar


Meu coração bate sem saber
Que meu peito é uma porta que ninguém vai atender
Meu coração bate sem saber
Que meu peito é uma porta que ninguém vai atender

Quem sente agora está ausente
Quem chora agora está por fora
Quem ama agora está na cama doente
Só corre nunca chega na frente
Se chega é pra dizer vou embora
Sorriso não me deixa contente

E todas as pessoas que falam pra me consolar
Parecem um bocado de bocas se abrindo e fechando
Sem ninguém pra dublar
Eu já disse adeus antes mesmo de alguém me chamar
Não sirvo pra quem dá conselho
Quebrei o espelho, torci o joelho, não vou mais jogar


Meu coração bate sem saber
Que meu peito é uma porta que ninguém vai atender
Meu coração bate sem saber